Crônica - Cesar Cruz

Photo-manipulation by Eduardo Miranda
over painting by Bill Sharp
A Cadeira Cor-de-Rosa

Depois do almoço, passeando a pé pelas imediações do escritório, passei em frente a uma loja de móveis para escritório, dessas estreitas em que os móveis ficam empilhados uns sobre os outros. Quase posta na calçada como mostruário, vejo uma bela cadeira giratória de assento de couro, estilo simples e honesto. Apalpei, girei e concluí: forte e confortável. E eu ando mesmo precisando de uma boa cadeira pra substituir esta lástima que agora me encontro sentado, que comprei num brechó, quase de graça, num momento da mais pura escassidão de recursos financeiros. Além de ranger e ser toda desconjuntada, traz escondida por debaixo da espuma magra uma saliência pontuda que me espeta a nádega direita, o que tem me deixado ultimamente com as crônicas tortas.

“Alguém pode me dizer o preço dessa cadeira?” – gritei, com a cara metida pra dentro da loja escura.

Lá do fundo um vendedor se levantou da sombra e veio vindo, moroso.

“Cento e cinquenta reais” – ele resmungou, chupando o dente do almoço.

“Ah, obrigado” – eu disse, já saindo.

“Mas se for essa aí mesmo do mostruário te faço a setenta”

Parei e me voltei pra ele.

“Setenta me interessa. Mas queria em outra cor...”

“Por setenta só essa peça mesmo, meu chapa”

“Mas é que essa é cor-de-rosa...”

“É o que temos nessas condições. Aproveita o preço! Te faço em três vezes no cartão”

“Não dá, cara”

“Por que não dá?”

“É que fica complicado colocar uma cadeira cor-de-rosa lá no meu escritório de casa, que é todo no estilo sóbrio”

“E que que tem?”

“Tem que as pessoas vão achar que além de careca agora dei pra veado”

“Será?”

“Claro que sim! Pensa comigo: se eu simplesmente puser a cadeira lá e não disser nada, no estilo tudo-muito-natural, as pessoas vão achar que uma cadeira assim, brutalmente cor-de-rosa, só pode ter um propósito: o de transmitir uma sutil mensagem das minhas preferências sexuais secretas para eventuais interessados. Sacou?”

“Huum... – ele pareceu pensar, chupando agora o dente do outro lado”

“Porém, se eu tentar o caminho da verdade, explicando que havia uma certa promoção exclusiva pra cadeiras cor-de-rosa, vão sair de casa cochichando e espalhando por aí que sou um desses caras que querem esconder o óbvio ululante, como diria o Nelson Rodrigues, e que além de não aceitar a própria homossexualidade, ainda fica tentando iludir os outros”

Deixei o vendedor pensativo na penumbra da loja e fui-me, caminhando pela rua, travando uma luta interna contra o irremediável corderrosismo daquela beleza de cadeira que pedia para ser comprada.

Mas como levá-la para casa sem perder a dignidade, a boa reputação, o respeito dos amigos, da sociedade?

De repente me veio uma ideia que me pareceu ótima: escrevo uma crônica engraçadinha relatando todas as minhas dúvidas diante da cadeira cor-de-rosa, depois envio pra coluna do jornal. Quando for publicada, recorto, mando pôr num quadrinho bacana e coloco na parede bem do lado da cadeira. Simples!

Dali em diante, sempre que um incauto chegar em casa e direcionar olhos condenativos para minha cadeira cor-de-rosa, depois pra minha cara, direi: “Meu caro, não se apresse nos pré-julgamentos, antes leia esta crônica aqui, ó!”.

Feliz com meu próprio brilhantismo fiz meia volta em direção à loja.

Então meus pensamentos foram adiante e passei a imaginar o dia em que haveria uma festa lá em casa, com um monte de gente que eu não conheceria misturada aos meus amigos, todos bebendo, inclusive eu, e as sensibilidades à flor da pele dado o álcool e a música, e num súbito eu juraria ter ouvido um sujeito dizer ao outro que “o dono dessa casa deve ser bicha, veja essa cadeira cor-de-rosa!”, e eu me achegaria à roda, sangue fervendo, e diria, copo na mão, “o dono da casa sou eu, algum problema?”, e diante de uma risada de escárnio do elemento, que olharia pra minha cadeira e pra minha cara, e, em um breve instante, do qual eu me arrependeria pelo resto da vida, o copo da minha mão se quebraria na borda da mesa e as paredes brancas e a própria cadeira cor-de-rosa seriam manchadas com espirros de um líquido rubro-negro, grosso. Mais tarde, diante de um júri popular, eu ouviria minha própria voz de homem banal que cometeu um grave erro a lamentar o irremediável; agora, mero espectador de mim mesmo, só me restaria contar os anos que me separariam de novo da luz do sol, da minha mulher e filha, toda uma vida desperdiçada graças à cabeça perdida numa repentina explosão de ira, vã, desatinada, a mesma ira incontrolável que já mudou o destino de tanto homem justo e bom na história da humanidade. E, mais tarde, numa cela imunda e lotada, eu escolheria morrer a um dia ter passado defronte àquela maldita loja com a cadeira cor-de-rosa exposta na calçada.

Melhor aguardar a cadeira azul marinho entrar na promoção.