Editorial

by Tim Burton
"How did it get so late so soon?"
~ Dr. Seuss
(American writer, poet, and cartoonist)

TUDA Abril, Abril TUDA!

Antes fosse só o tempo que nos afligisse, mas há tempos deixou de ser! Ou melhor, agregaram-se a ele outras inquietudes, outras preocupações, outros afazeres, outras tantas coisas que acontecem enquanto estamos perdendo tempo com alguma coisa... A síndrome do tempo perdido, do acontecimento imediato, da informação disponível... chamem de FOMO, agorafobia, síndrome do pânico, ou pura perda de tempo, a coisa é mais profunda do que parece ser, e a vida, em si, hoje em dia é mais vida do que todas as vidas vividas no passado. A vida hoje transbordou-se em si mesma, transbordou-se por todos os leitos, em todas as normas, e já não se alimenta mais do passado.

Está só neste mundo do presente, a vida... e auto-intitula-se vida moderna!

Ao homem ensinaram as técnicas dessa vida moderna, disponibilizaram dados e instrumentos para viver intensamente essa vida moderna, mas não lhe ensinaram como desfrutar os momentos vividos. Algo lhe falta neste contexto, e em tudo se espelha essa falta, essa lacuna... parece que o mundo todo carece de algo. Sensibilidade? Não, há muita nas instituições de caridade e nas novelas. Solidariedade? Não, as redes sociais provam o contrário. Conhecimento? Também não, o mundo todo está na internet, os jornais e os blogs te informam, a TV te mostra e o rádio te explica.

O que falta então? Na falta de melhor palavra, falta ALMA! Alma para dar suporte à matéria - já que tudo é matéria! Sem alma, a matéria não se sustenta. Como no violino, a alma sustenta sua estrutura e também é responsável pela acústica das partes - a matéria está lá, mas precisa ser usada com sabedoria!

É na Contra-mão da modernidade esvaziada que vem TUDA, transbordando alma, com os já conhecidos pyndahýbicos, deste e de outros mundos, desmodernos, apocalípticos da modernidade efêmera, integrados do conhecimento perene, vem essa TUDA, paupérrima mas bem sustentada, ecoar outro tema da vida moderna: a modernidade.

Desnecessário dizer, como sempre, TUDA traz muita coisa boa, e novidades também. Confiram na Dívida Interna.

TUDA, no prelo...

É isso aí companheiros, como dizia Raulzito, "Lá vamos nós de novo, vamos na gangorra, no meio da zorra desse desse vai-e-vem, que é tudo mentira, e quem vai nessa pira, atrás do tesouro de Ali-bem-bem...", o que não deixa de ser a velha e suja LabUTA do dia a dia, sem tesouro, onde o excesso de opções é falta de opção, onde a bonança não passa de miséria, onde quem muito tem nada desfruta, e o melhor mesmo é manter-se na contra-mão dessa imediatialidade das coisas, onde nada pode - ou consegue - passar despercebido, e tem que ser registrado, urgentemente, onde desavisadamente você é capturado numa foto, num vídeo, e de repente aparece numa página social qualquer, simplesmente porque alguém preferiu registrar ao invés de desfrutar, e registram para desfrutarem mais tarde, sentados em seus sofás macios, assistindo aos seus vídeos e fotos pelo computador, conectados em TVs de duzentas e poucas polegadas. Estão se expondo - e querem te expor!

E se isso não soar estranho, estamos todos perdendo tempo...

Asyno Eduardo Miranda
o (auto-proclamado) editor
deste porto qvasyseguro da jlha do Eire
oje, septº dia do qvarº mez
d este Anno Domini de MMXIII

Dívida Interna

From "Doubt", by Misha Gordin

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
dos autores

Participam desta edição:
Alberto Giacometti, Aristides Klafke, Arnaldo Xavier, Banksy, Bill Sharp, Carlos Drummond de Andrade, Caspar David Friedrich, Cesar Cruz, Cornelius Eady, Dom e Ravel, Dorival Fontana, Eduardo Miranda, John Opie, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Marina Alexiou, Misha Gordin, Nicolas Poussin, Pablo Picasso, Pedro Du Bois, Plínio de Aguiar, Qi Baishi, Rikka Ayasaki, Robert Indiana, Roniwalter Jatobá, Santiago de Novais, Theodor Seuss Geise, Tim Burtom e William Blake

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Job and his Daughters, 1823-26, Copper engraving
by William Blake


subsenhor                                     Mas                            Eles fedem
Como o Éden

[ in Lud-Lud, Casa Pyndahýba Editora, São Paulo, 1998 ]

Poesia - Aristides Klafke

Bid now on Hope, by Robert Indiana

4

Não posso não falar do amor com amor e para o amor
Expôr o rumor da vulcânica emoção que aumenta de volume
Toda vez que você, meu amor, aparece em minha frente
E desaparece de meu sentimento de saudade

Não posso não falar do amor camaleônico
Que nos dita ordens de trás pra frente
E nos atraca um ao outro, sem perdão

Do amor de ter na minha mão a sua mão
Como corrente... tê-las entrelaçadas

Da mútua masturbação de nossas línguas
Nossos lábios, nossos dentes mordiscantes
Não posso não… dos predicados …
De nosso amor endiabado, febril, esfomeado
Nao posso não, meu amor
Do sentimento embargado... bruxuleante…

Nao posso não parar meu amor
Não posso não...
Meu amor, não posso não…
Do amor… falar
Que todo caminho
Leva
E traz
O seu arôma
Que falar eu te amo
É uma arte
Pouco praticada
Em poesia

[ in Quebrada, inédito ]

Poesia - Plínio de Aguiar

Apollon et les Muses sur le mont Parnasse, par Nicolas Poussin
circa 1626 - 1631
Rostos Perdidos Do Parnaso

Ouvem-se (ora, direis) lágrimas.
Estrelas marcam
Acnes em rostos incandescentes.

Resta-nos atordoados buscar astrônomos
Bêbados agrupados em deserto
Do centro velho da cidade.

Resta-nos, além da caminhada
Entre prédios do tempo perdido,
O exercício necessário à escuridão
Que para cada rosto virá.

Plínio de Aguiar
SSA, 2013

Poesia - Santiago de Novais

Ilustração enviada pelo Autor e
manipulada eletronicamente pelo Editor
Balade III

pena e pluma,
tanto pelejar a
areia vence a espuma

pena e pena,
tanto velejar
nada nada e tanto mar

Poesia - Dorival Fontana

Chinese Ink Landscape

Liberdade

Sob o cobertor
o calor do seu corpo
deixei.

Rompi o seu abraço,
desfiz qualquer
bem ou mal entendido.

Na chuva mansa
meu corpo seguiu
sem lembranças.

Da janela
seu olhar partido
procurava um adeus.

Não me voltei,
virei a esquina...
deixei de existir.

Poesia - Pedro Du Bois

Painting by Rikka Ayasaki
Vidas

No calor da pugna
no calar da ruína
no colar exposto
na prática prisão
dos elementos: o ouro
                       reluzente
                       craveja a pedra
                       arremessada

         o colar sufoca
                     a vida
              inexistente.

(Pedro Du Bois, inédito)

Poesia - Marina Alexiou

Der Wanderer über dem Nebelmeer, by Caspar David Friedrich
Ilustração enviada pela Autora, manipulada eletronicamente pelo Editor


O habitante silencioso e discreto
Exprime de modo escrupuloso e gentil
Mas firme, aquilo que jaz nos contornos da alma.
Condensa em sua voz que se desdobra em muitas,
A força de um inescapável comando.
As suas ordens e súplicas registram profundezas luminosas.
Vívidas veredas por onde mesmo o impiedoso caminhante
Se descobre protegido,
No cipoal que forma o seu itinerário de desejos inconfessos.
O nômade cercado pelo palácio de cristal do senhor de seu cativeiro,
Quase não percebe o brilho das próprias riquezas internas que o envolvem.
Nem as poucas nuances que contrastam com a luz do sol para os sentidos,
Mas ilusória aos jardins do reino da sua alma.
O guardião, aquele, obscurecido entre os pensamentos fugidios do itinerante,
Aguarda-o em seu antigo trono
Pela coragem de ir bater à porta
E abrir o coração para novas e desconhecidas paisagens
E com um desconhecido espanto,
Trilhar entre as alamedas e beber nas suas fontes
Até encontrar o misterioso anfitrião.
Que poderá levá-lo, dessa vez, à sala nobre
Dos visitantes esperados desde sempre....

Crônica - Roniwalter Jatobá

Romeo and Juliet (Act IV, scene V)
by John Opie

Pensão Beira-Rio

Leio no jornal trágica notícia. No interior de São Paulo, um casal de jovens, depois de três meses de namoro, matou-se. A infeliz história amorosa chocou a cidade.

Na minha infância, presenciei certa vez o drama de Romeu e Julieta em novo cenário.

1959: cidade mineira de Jampruca, futuro município de Campanário, ao lado da Rio-Bahia, ainda sem asfalto. Passava do meio-dia. O boato começou na Rua do Comércio e logo chegou à casa onde eu morava.

-- Um casal, você soube?, morreu agorinha mesmo num quarto da pensão Beira-Rio -- ouvi a vizinha confidenciar à mãe na beirada da cerca de madeira que dividia os quintais das casas.

A pensão Beira-Rio ficava num velho casarão pintado de azul. Era uma humilde hospedaria de beira de estrada, com fundos para o rio Itambacuri.

Ofegante, entro de mansinho no meio da multidão que tomava a calçada. Afoito, tento chegar o mais perto possível do local da tragédia entre as pernas de adultos. De repente, tropeço em um pé calçado com uma longa bota de couro preto e suja de estrume.

Era pai. Ele segurou com força em meus braços e lançou um olhar reprovador:

-- Já pra casa -- disse ele. -- Isso não é coisa pra menino.

Volto com raiva empurrando a multidão. Em casa, relato tudo a mãe. Cheio de imaginação, digo que vi um homem e uma mulher, deitados e nus na cama de colchão de palha.

-- Deixa de lorotas -- mãe disse. -- Seu pai tem razão. Isso não é coisa pra menino.

Já à tardinha, pai volta da rua. Depois da janta, ouço sua voz segredar à mãe os acontecimentos da tarde. Os dois amantes eram moradores de cidade próxima. A família era contra o casamento. Os dois resolveram fugir para bem longe. Os parentes foram em busca, em perseguição. Acuados na pensão, resolveram fazer um pacto de morte. De comum acordo, tomaram formicida Tatu.

-- Sabe esse produto que uso para matar ratos e formigas? -- explicou pai.

Por muito tempo, sonhei com o casal entrelaçado, ao lado do rio Itambacuri, sobre a cama da pensão na beira da estrada Rio-Bahia.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração do Autor,
manipulada eletronicamente pelo Editor

Um Dia Na Cidade

Josias Germano chegou ao ponto de ônibus cismado... depois de anos e anos andando de carro ele compreendeu que já não estava mais acostumado a usar o transporte coletivo... agora ele tinha um bilhete único e iria usá-lo pela primeira vez: “basta encostar o bilhete no controle junto a catraca que um letreiro eletrônico anunciará o desconto no saldo do cartão e você passa na boa”, foi o que falou sua esposa Maria Olávia.

Entretanto ele estava apreensivo, afinal algo sempre pode dar errado... porém foi tudo normal... Chegou ao centro “super-rápido”, afinal valera a pena a opção pelo transporte coletivo, pois havia realizado o trajeto confortavelmente em apenas quinze minutos... agora ele iria trabalhar no centro da cidade no prédio da diretoria da empresa... agora ele não precisava mais almoçar em shopping-center... poderia almoçar em restaurantes de verdade... e foi o que ele fez... após período da manhã, no qual ele fora apresentado para seus novos colegas de escritório ele foi realizar algo que sempre desejara: almoçar no Itamarati, no Largo de São Francisco, um restaurante com mais de cinqüenta anos, freqüentado pelos seus pais e avós...

Ao entrar já se surpreendeu: deu de cara com um legítimo “capitão”, ou seja um daqueles porteiros de quepe e paletó-jaquetão com botões dourados, cuja única função era abrir a porta e dar bom dia aos fregueses... (mais tarde ele descobriu que não era bem a única função pois o “capitão” para fugir do tédio ajudava na arrumação das mesas)... depois continuou gostando: num amplo salão com paredes de lambris de madeira decorado com cartazes antigos de sorvete, uma brigada de garçons-garçons (*) servindo pratos clássicos do tipo leitão a pururuca, salsichão com salada de batatas, lula a provençal , etc... para começar pediu uma empadinha (**) depois um arroz-de polvo (***) e pudim de leite, para beber água com gás e café...

Depois o nosso protagonista, ao sair do Itamarati reparou no Largo de São Francisco e lembrou do novo Papa, jesuíta como o Padre Antônio Vieira... “James Joyce estudou com os jesuítas, já Paulo Leminsky estudou no Mosteiro de São Bento, que fica perto daqui” - pensou...

O “segundo-tempo” do trabalho foi normal... conseguiu sair a tempo de “pegar” a galeria do Rock aberta... chegando lá foi logo na clássica Baratos Afins e lá encontrou uma raridade: O Long-playng (elepê) “Standing Ovation”, no qual a genial cantora Gladys Knight canta “Help Me Make Through The Night” a canção-tema do filme “Fay City” dirigido por John Huston...

Antes de entrar no metrô, teve tempo de apreciar a pintura de Maurício Nogueira Lima (um tanto desgastada) na empena de um prédio no Largo de São Bento voltada para op Mosteiro onde Paulo Leminsky estudou... depois dentro do vagão lembrou-se da coreografia característica que era feita pelo grupo que acompanhava Gladys Knight: um grupo vocal chamado The Pips... “se os craques de hoje que fazem estas dancinhas ridículas na comemoração dos gols, assistissem a um clip dos The Pips morreriam de vergonha” - pensou.

Ao chegar em casa encontrou sua cara-metade Marília Olávia e se sentiu como um Ulisses retornando a sua Ítaca... argumentou para ela que o retorno ao aconchego do lar é um dos temas clássicos da literatura... e que cada dia é uma pequena Ilíada... depois foram no restaurante da portuguesa, que fica no outro lado da rua...



(*) garçons-garçons significa garçons de verdade: pessoas maduras vestindo smoking jacket com gravata borboleta, nada daqueles estudantes vestidos de preto e gel no cabelo

(**) um parente dissera que o salgado era uma das marcas registradas do restaurante e que só tinha empadinha de palmito - “não adianta pedir empada de frango ou de camarão que não tem!”

(***) O nosso protagonista lera uma crônica sobre o referido restaurante que enaltecera este prato, crônica esta escrita por Zelino Zamparini, autor de “Lágrimas Gargalhantes”, um dos livros preferidos de Josias Germano.

Crônica - Cesar Cruz

Photo-manipulation by Eduardo Miranda
over painting by Bill Sharp
A Cadeira Cor-de-Rosa

Depois do almoço, passeando a pé pelas imediações do escritório, passei em frente a uma loja de móveis para escritório, dessas estreitas em que os móveis ficam empilhados uns sobre os outros. Quase posta na calçada como mostruário, vejo uma bela cadeira giratória de assento de couro, estilo simples e honesto. Apalpei, girei e concluí: forte e confortável. E eu ando mesmo precisando de uma boa cadeira pra substituir esta lástima que agora me encontro sentado, que comprei num brechó, quase de graça, num momento da mais pura escassidão de recursos financeiros. Além de ranger e ser toda desconjuntada, traz escondida por debaixo da espuma magra uma saliência pontuda que me espeta a nádega direita, o que tem me deixado ultimamente com as crônicas tortas.

“Alguém pode me dizer o preço dessa cadeira?” – gritei, com a cara metida pra dentro da loja escura.

Lá do fundo um vendedor se levantou da sombra e veio vindo, moroso.

“Cento e cinquenta reais” – ele resmungou, chupando o dente do almoço.

“Ah, obrigado” – eu disse, já saindo.

“Mas se for essa aí mesmo do mostruário te faço a setenta”

Parei e me voltei pra ele.

“Setenta me interessa. Mas queria em outra cor...”

“Por setenta só essa peça mesmo, meu chapa”

“Mas é que essa é cor-de-rosa...”

“É o que temos nessas condições. Aproveita o preço! Te faço em três vezes no cartão”

“Não dá, cara”

“Por que não dá?”

“É que fica complicado colocar uma cadeira cor-de-rosa lá no meu escritório de casa, que é todo no estilo sóbrio”

“E que que tem?”

“Tem que as pessoas vão achar que além de careca agora dei pra veado”

“Será?”

“Claro que sim! Pensa comigo: se eu simplesmente puser a cadeira lá e não disser nada, no estilo tudo-muito-natural, as pessoas vão achar que uma cadeira assim, brutalmente cor-de-rosa, só pode ter um propósito: o de transmitir uma sutil mensagem das minhas preferências sexuais secretas para eventuais interessados. Sacou?”

“Huum... – ele pareceu pensar, chupando agora o dente do outro lado”

“Porém, se eu tentar o caminho da verdade, explicando que havia uma certa promoção exclusiva pra cadeiras cor-de-rosa, vão sair de casa cochichando e espalhando por aí que sou um desses caras que querem esconder o óbvio ululante, como diria o Nelson Rodrigues, e que além de não aceitar a própria homossexualidade, ainda fica tentando iludir os outros”

Deixei o vendedor pensativo na penumbra da loja e fui-me, caminhando pela rua, travando uma luta interna contra o irremediável corderrosismo daquela beleza de cadeira que pedia para ser comprada.

Mas como levá-la para casa sem perder a dignidade, a boa reputação, o respeito dos amigos, da sociedade?

De repente me veio uma ideia que me pareceu ótima: escrevo uma crônica engraçadinha relatando todas as minhas dúvidas diante da cadeira cor-de-rosa, depois envio pra coluna do jornal. Quando for publicada, recorto, mando pôr num quadrinho bacana e coloco na parede bem do lado da cadeira. Simples!

Dali em diante, sempre que um incauto chegar em casa e direcionar olhos condenativos para minha cadeira cor-de-rosa, depois pra minha cara, direi: “Meu caro, não se apresse nos pré-julgamentos, antes leia esta crônica aqui, ó!”.

Feliz com meu próprio brilhantismo fiz meia volta em direção à loja.

Então meus pensamentos foram adiante e passei a imaginar o dia em que haveria uma festa lá em casa, com um monte de gente que eu não conheceria misturada aos meus amigos, todos bebendo, inclusive eu, e as sensibilidades à flor da pele dado o álcool e a música, e num súbito eu juraria ter ouvido um sujeito dizer ao outro que “o dono dessa casa deve ser bicha, veja essa cadeira cor-de-rosa!”, e eu me achegaria à roda, sangue fervendo, e diria, copo na mão, “o dono da casa sou eu, algum problema?”, e diante de uma risada de escárnio do elemento, que olharia pra minha cadeira e pra minha cara, e, em um breve instante, do qual eu me arrependeria pelo resto da vida, o copo da minha mão se quebraria na borda da mesa e as paredes brancas e a própria cadeira cor-de-rosa seriam manchadas com espirros de um líquido rubro-negro, grosso. Mais tarde, diante de um júri popular, eu ouviria minha própria voz de homem banal que cometeu um grave erro a lamentar o irremediável; agora, mero espectador de mim mesmo, só me restaria contar os anos que me separariam de novo da luz do sol, da minha mulher e filha, toda uma vida desperdiçada graças à cabeça perdida numa repentina explosão de ira, vã, desatinada, a mesma ira incontrolável que já mudou o destino de tanto homem justo e bom na história da humanidade. E, mais tarde, numa cela imunda e lotada, eu escolheria morrer a um dia ter passado defronte àquela maldita loja com a cadeira cor-de-rosa exposta na calçada.

Melhor aguardar a cadeira azul marinho entrar na promoção.

Conto - José Miranda Filho

by Banksy,
manipulated by Eduardo Miranda
Encontro de Amigos - Parte 17

Voltei a Los Angeles e nos integramos à excursão. No dia seguinte, subimos toda a costa oeste americana, começando por San Diego, passando por La Joya, onde está localizada a famosa Universidade da Califórnia, Long Beach, Ventura, uma belíssima praia do Pacifico, Santa Bárbara, Malibu, a praia dos milionários, Palm Springs, Hollyood, terra do sonho e do amanhecer, Beverly Hill, bairro nobre, de residências monumentais de artistas e ricaços, San Luís Obispo, San José e tantas outras cidades, até alcançarmos San Francisco, onde passamos a noite.

Na madrugada do dia seguinte fomos despertados pelo gerente do hotel nos informando da paralisação dos aeroportos locais, em razão de uma greve decretada pelos operadores de vôo. Por esse motivo tivemos que ficar em San Francisco mais dois dias.

Finalmente na madrugada do dia 28 de Dezembro, embarcamos para Nova Iorque e de lá para São Paulo, com escala, em Lisboa, único vôo disponível se quiséssemos voltar ao Brasil. Não havia alternativa de itinerário.

Na chegada a São Paulo, um cidadão de nacionalidade brasileira que vivia em Portugal há oito anos não conteve a emoção ao chegar no Brasil. A alegria de pisar em solo brasileiro lhe trouxe tanta emoção que ele esmurrava o ar... dava vivas ao Brasil e dizia em voz alta que esse era o maior país do mundo. Bateu palmas. Seu gesto foi imitado por todos os demais passageiros que se solidarizaram com sua alegria. Ao descer do avião ele beijou o chão, o que nos emocionou bastante.

Durante a viagem conversamos com ele. Disse-nos que se chamava Roque e que vivia em Évora, Portugal, há oito anos. Obteve a cidadania portuguesa por opção. Tinha um bom emprego, casa e carro. Havia casado há seis meses e pela primeira vez em dez anos retornava ao Brasil, apenas para passear e apresentar sua esposa à família que residia em Brasília e não a conhecia ainda, mas que retornaria a Portugal dentro de um mês. Queria aproveitar sua estada no Brasil para visitar algumas cidades e mostrar para sua mulher que o Brasil é tão belo quanto Portugal.

Fiquei imaginando como um país tão grande como o nosso não dispõe de emprego suficiente para segurar os jovens e evitar que se lancem em aventuras à procura de melhores oportunidades de trabalho em outros países, às vezes, até sem sucesso. Desembarcamos. Desejei-lhes feliz estada. Ele me disse que ia para o Ipiranga, um bairro próximo a São Caetano do Sul, e depois seguiria para Brasília.

Tradução - Eduardo Miranda

From "Shadows", by Misha Gordin
Charlie Chaplin Representa um Poeta
by Cornelius Eady

O palco está montado para um desastre iminente.
Nele, o pequeno vagabundo equilibra-se
sobre uma pilha de livros,
para assim alcançar o microfone.
O poeta que ele representa, de alguma forma
sustenta-se, e murmurando,
amontoa os trapos a seus pés.

Ele abre a boca e... Ta-dááá!
Dela saem pombas, lâmparinas,
rosas de plástico. Bem, é isso,
constrangiu-se o jovem professor
que coordenara tudo isso.
Chega de calouros poetas!

O chefe resmunga algo para a porta
e se afasta.
Observando sua ginga

o vagabundo continua como se
nada tivesse acontecido,
com um braço solto
a imitar uma asa.

Charlie Chaplin Impersonates a Poet

The stage is set for imminent disaster.
Here is the little tramp, standing
On a stack of books in order
To reach the microphone, the
Poet he’s impersonating somehow
Trussed and mumbling in a
Tweed bundle at his feet.

He opens his mouth: Tra-la!
Out comes doves, incandescent bulbs,
Plastic roses. Well, that’s that,
Squirms the young professor who’s
Coordinated this,
No more visiting poets!

His department head groans
For the trap door. As it
Swings away

The tramp keeps on as if
Nothing has occurred,
A free arm mimicking
A wing.

Releitura - Carlos Drummond de Andrade

Walking Man, by Alberto Giacometti
José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,

seu terno de vidro, sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?

Ilustração - Qi Baishi

Qí Báishí (齊白石, ou Ch'i Pai-shih) (Xiangtan, China, 1 de Janeiro de 1864 - Beijing, China, 16 de Setembro de 1957) foi um dos maiores e mais celebrados pintores chineses. Assinou também obras diversas obras com os pseudônimos Qí Huáng (齊璜) e Qí Wèiqīng (齐渭清).

Filho de agricultures, é identificado com a pintura tradicional chinesa. Acostumado a pintar árvores, animais ou flores, Baishi originou o maior desenvolvimento da arte na China, em um período de profunda estagnação.
 
Os temas de suas pinturas incluem de tudo: figuras, animais, paisagens, legumes... Em seus últimos anos, muitas de suas obras retratam ratos, camarões, ou pássaros. Qi Baishi é particularmente conhecido por suas pinturas de camarões.
 
Também foi reconhecido por seu trabalho na esculpir selos (carimbos) de pedra, tendo recebido o título de "o tesouro de trezentos selos de pedra".
Em 1953 foi eleito presidente da Associação de Artistas Chineses. Morreu em Beijing em 1957.

Ilustração - Pablo Picasso

Guernica, de Pablo Picasso
"No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo."
— Pablo Picasso, sobre Guernica

Video - Dom & Ravel

Não exatamente um vídeo, mas estava procurando algo de época, antigo, sei lá, e de repente me deparei com Dom & Ravel...

A dupla, que ficou popular nos anos 1970 com canções como "Eu Te Amo meu Brasil", esta "Marcas do que se foi", Animais Irracionais, "Obrigado ao Homem do Campo", entre outras, teve a música "Você também é Responsável" transformada em hino do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), pelo ex-ministro da Educação, Jarbas Passarinho, em 1971. Posteriormente, a ligação das canções que na época lhes renderam o sucesso com a ditadura militar, levou a dupla ao ostracismo.

TUDA, aqui, recorda um tempo, sem cutucar feridas...